22 outubro 2009

Compras para a alimentação escolar e a promoção da agricultura familiar

Por: Renato S. Maluf, no Carta Maior

A Lei nº 11.947/2009 pode se constituir num marco na história da alimentação escolar no Brasil, desde logo, por conferir densidade institucional a um programa que, embora antigo, carecia de definições em termos de diretrizes e obrigações dos gestores e entes federados envolvidos.

Sobre esse tema, ler também: "Alimentação, escola e agricultura familiar"

Em artigo anterior, apresentei a concepção e principais diretrizes do novo formato do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), estabelecido pela recém sancionada Lei nº 11.947/2009. Abordo agora uma importante novidade introduzida pela referida lei quanto à utilização dos recursos repassados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) a Estados e municípios para a compra de alimentos para o programa. O artigo 14 obriga que se utilize no mínimo 30% do total dos recursos na aquisição de gêneros alimentícios originados diretamente da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações.

Prioridade é conferida aos assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e comunidades quilombolas. Para o fornecimento de cerca de 47 milhões de refeições diárias, o FNDE previu repassar, em 2009, R$ 2 bilhões. Estima-se que o aporte adicional de Estados e municípios para a compra de alimentos chegue a 25% do total federal, isto é, mais R$ 500 milhões sobre os quais, porém, não pesa a referida obrigatoriedade.

Considerando apenas a dotação de recursos federais, a agricultura familiar passa a contar com um mercado institucional (de compras governamentais) de, pelo menos, R$ 600 milhões anuais, podendo ser maior, caso haja suplementação orçamentária no ano em curso ou as compras da agricultura familiar ultrapassem o mínimo de 30%. Nem todo esse montante representa acréscimo, já que muitos gestores municipais já compravam alimentos dessa categoria de agricultor antes da entrada em vigor da lei, muitas vezes se valendo do Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA).

Desde logo, não pode ser minimizado o papel da experiência desenvolvida pelo PAA na formatação das diretrizes do PNAE, que incorporam os agricultores familiares como fornecedores. O Brasil tem se destacado pela utilização das compras governamentais para o fortalecimento da agricultura familiar. O PAA, por sua vez, tem demonstrado ser esta uma alternativa viável de operacionalização de programas governamentais e não-governamentais, inclusive fornecendo há sete anos para as escolas como complemento ao PNAE. Destaque-se, porém, não estar ainda suficientemente definida a questão da interação das compras governamentais do PNAE e do PAA. Um importante exercício da intersetorialidade propugnada pelo enfoque da segurança alimentar e nutricional que fundamenta ambos os programas seria a integração da gestão das compras de alimentos por eles realizadas.

A Lei nº 11.947/2009 prevê a dispensa da observância do percentual de 30% quando o fornecimento pela agricultura familiar se defrontar com uma das seguintes circunstâncias: i) impossibilidade de emissão do documento fiscal correspondente; ii) inviabilidade de fornecimento regular e constante dos gêneros alimentícios; ou iii) condições higiênico-sanitárias inadequadas. Esse último ponto foi objeto de intensa negociação quando da votação final da lei no Senado Federal, envolvendo gestores das três esferas de governo, entidades de agricultores, organizações e redes sociais e o CONSEA, aliás, atores bastante envolvidos na própria formulação do projeto de lei. Note-se que estiveram em confronto distintas avaliações sobre a capacidade de as várias modalidades de agricultura familiar responderem, local ou regionalmente, a essa demanda.

A questão aqui subjacente é a conversão de um limite – admitindo-se que a referida capacidade da agricultura familiar terá que ser construída em várias regiões do país – em decisão política de utilizar o potencial do instrumento das compras governamentais na promoção de um desenvolvimento não só ambientalmente sustentável como também mais equitativo, por meio do estímulo à agricultura familiar.

Os agentes responsáveis pela aquisição dos alimentos são as respectivas Secretarias de Educação, as escolas federais ou as unidades executoras por meio de delegação; porém, prevê-se o envolvimento também das Secretarias de Agricultura e de Saúde, Emater, organizações da agricultura familiar, nutricionistas, Conselhos de Alimentação Escolar, de Desenvolvimento Rural e de Segurança Alimentar e Nutricional (municipais e estaduais). Essa participação é especialmente importante no mapeamento da disponibilidade e variedade da produção local, bem como na estrutura e no porte dos possíveis fornecedores a serem cadastrados pela Secretaria de Educação. A lista dos alimentos a serem adquiridos se origina da elaboração dos cardápios de responsabilidade de um/a nutricionista.

Tratando-se de aquisição realizada com chamada pública de compra com dispensa de procedimento licitatório, a regulamentação do programa definiu procedimento com vistas a combinar a obtenção de preços compatíveis com os vigentes no mercado local e a oferta de remuneração adequada aos agricultores. Como regra geral, a pesquisa de preços deve levar em conta os preços de referência praticados no âmbito do Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA). Nas localidades em que não houver PAA (municipal e/ou estadual), os preços de referência para aquisições de até R$ 100.000,00/ano devem levar em conta a média dos preços pagos aos produtos da agricultura familiar por três mercados varejistas locais (privilegiando feiras de agricultores familiares) ou os preços vigentes de venda no varejo local. Para aquisições acima de R$ 100.000,00/ano, as referências podem ser a média dos preços praticados no mercado atacadista nos últimos 12 meses ou dos preços apurados em licitações de compra de alimentos, ou ainda os preços vigentes em três mercados atacadistas locais ou regionais. Por fim, os preços não poderão ser inferiores aos dos produtos cobertos pelo Programa de Garantia de Preços para Agricultura Familiar (PGPAF).

Outro aspecto importante, também objeto de discussão intensa, foi o reconhecimento da possibilidade de participação de agricultores familiares organizados tanto em grupos formais, na forma de cooperativas e associações, quanto em grupos informais, apoiados por entidades articuladoras não remuneradas e sem responsabilidade formal. Além desses grupos, participa também a categoria denominada de empreendedores familiares rurais. Em todos os casos, é requerida a declaração de aptidão ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar/PRONAF. Há um limite de compra de R$ 9.000,00 anuais por agricultor, e de até R$ 100.000,00 dos grupos informais. Uma inquietação vem sendo levantada quanto à seleção dos agricultores que participarão do programa e o risco de práticas clientelistas, remetendo à questão, não discutida aqui, do controle social sob responsabilidade dos CAEs, o qual pode receber importante contribuição dos CONSEAs estaduais e municipais.

Os grupos formais e informais e os empreendedores familiares rurais apresentam projeto de venda de gêneros para a alimentação escolar, cuja seleção pelo setor competente priorizará as propostas de grupos do município. Em não se obtendo as quantidades necessárias, estas poderão ser complementadas com propostas de grupos da região, do território rural, do estado e do país, nesta ordem de prioridade. Ressalte-se que as normas do programa sugerem ter em conta, também, a sazonalidade da produção e priorizar, sempre que possível, os gêneros alimentícios orgânicos ou agroecológicos. Além disso, o detalhamento do cardápio obriga incluir porções de frutas e hortaliças, limita conteúdos de açúcar e gorduras, proíbe bebidas com baixo teor nutricional (refrigerantes e refrescos artificiais) e restringe embutidos, enlatados e preparados.

A Lei nº 11.947/2009 pode se constituir num marco na história da alimentação escolar no Brasil, desde logo, por conferir densidade institucional a um programa que, embora antigo, carecia de definições em termos de diretrizes e obrigações dos gestores e entes federados envolvidos. O PNAE pode ser incluído entre os chamados “programas basilares” do futuro Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, previsto na Lei nº 11.346/2006. Este qualificativo se deve ao fato de ser este um programa em área-chave que, ademais, extrapola seus objetivos primeiros e estruturas específicas, sendo capaz de atuar como nucleador de ações integradas que expressam a desejada intersetorialidade da segurança alimentar e nutricional.

Por fim, cabe destacar que, desde a construção da proposta que resultou na nova lei até, principalmente, sua materialização em todos os municípios do país, o PNAE envolve um exercício nada óbvio da perspectiva do direito à alimentação e da intersetorialidade reivindicada pelo enfoque da soberania e da segurança alimentar e nutricional que vem sendo desenvolvido no Brasil. Considere-se não só a multiplicidade de atores com olhares distintos e interesses nem sempre coincidentes, como também as relações nem sempre harmoniosas entre os entes federados. No mínimo, assiste-se à criação de um elo institucional entre a escola e a atividade de ensino e a agricultura de base familiar, mediada pelos alimentos (os bens alimentares) e pela alimentação (o modo como nos apropriamos desses bens).

Renato Maluf é economista, professor CPDA/UFRRJ onde coordena o Centro de Referência em Segurança Alimentar e Nutricional (CERESAN). Integra a coordenação do Fórum Brasileiro de SAN e é presidente do CONSEA. Pesquisador do OPPA.

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